terça-feira, 10 de agosto de 2010

Um estudo de caso-controle

RESUMO
Este estudo tem como objetivo identificar variáveis associadas à ideação suicida ao longo dos últimos 12 meses, na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil. Através de um estudo de caso-controle investigou-se fatores associados a ideação suicida mediante análise de variáveis independentes relacionadas ao indivíduo, à família e à saúde. Foram entrevistados 29 casos de ideação e 166 controles. Os casos foram identificados através de um inquérito de prevalência e os controles, selecionados aleatoriamente da mesma base populacional, entre os que não relataram pensamento suicida nos últimos 12 meses. Modelos de análise de regressão foram propostos para controlar a ação dos fatores de confusão ou modificadores de efeito. Nos resultados obtidos, as variáveis demográficas não estiveram associadas à ideação. Na análise final permaneceram com significância estatística as variáveis falta de energia e humor deprimido, derivadas do SRQ-20, dificuldades emocionais relatadas, vizinhança não solidária e menor freqüência à igreja. Ideação suicida mostrou-se consistentemente associada a fatores relacionados a sintomas depressivos, principalmente falta de energia e humor deprimido.

Introdução
No intuito de desenvolver métodos para o estudo do comportamento suicida em diferentes contextos, avaliar estratégias de tratamento e estabelecimento de bases científicas para futuras pesquisas, lançou-se o Estudo Multicêntrico de Intervenção no Comportamento Suicida (SUPRE-MISS), da Organização Mundial da Saúde (OMS) . Trata-se de um projeto transcultural realizado em oito países (Brasil, Estônia, Índia, Irã, China, África do Sul, Sri Lanka e Vietnam) dentro de uma iniciativa destinada à prevenção do suicídio, com a supervisão científica do Australian Institute for Suicide Research and Prevention, Griffith University (Brisbane, Austrália) e do National Centre for Suicide Research and Prevention of Mental Ill-Health, Karolinska Institute (Estocolmo, Suécia).
Na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil, foi realizado em 2003 um inquérito de base populacional, constituinte do projeto SUPRE-MISS que revelou os casos de ideação suicida, focalizados neste trabalho.
Alguns estudos associam ideação suicida ao risco de tentativas de suicídio e estima-se que 60% dos indivíduos que se suicidam tinham, previamente, ideação suicida. A gravidade e a duração dos pensamentos suicidas correlacionam-se com a probabilidade de tentativa de suicídio, que é, por sua vez, o principal fator de risco para suicídio completo. Evidenciam-se, então, relações importantes entre pensamento e ato no contexto dos comportamentos suicidas, ainda que outros autores defendam tendências à não progressão da ideação para outras etapas do comportamento suicida.
Dois estudos epidemiológicos recentes também demonstraram associação entre ideação e tentativas de suicídio. Pirkis et al., na Austrália, investigaram uma amostra de 10.641 sujeitos, 16% dos quais tinham tido ideação suicida ao longo da vida. Nesse subgrupo, 12% tentaram suicídio num período de um ano de seguimento. Kuo et al. , em Baltimore (Estados Unidos), no intuito de compreender aspectos relacionados ao surgimento da ideação, realizaram um estudo de corte prospectivo de 3.481 sujeitos, encontrando uma incidência de 10% de tentativas de suicídio em pessoas que, na entrevista de base, 13 anos antes, relataram ideação suicida comparada com 1,6% de incidência de tentativas para pessoas que não relataram ideação.
Pacientes com ideação suicida são usuários freqüentes de serviços ambulatoriais e de internações em saúde geral e mental com maior demanda para aconselhamento, informações e uso de medicação, freqüentemente insatisfeitos quanto ao atendimento de suas necessidades. Há evidências de que intervenções específicas, realizadas em serviços de atenção primária, são efetivas em reduzir ou resolver ideação suicida e de que são freqüentes os atendimentos clínicos nos meses precedentes a uma tentativa.
Além disso, grande parte do trabalho de prevenção do suicídio fundamenta-se na identificação de fatores de risco, seja através da elaboração de estratégias de prevenção específicas para grupos específicos, ou estratégias de base populacional. Uma caracterização atenta da parcela da população que manifesta ideação suicida pode revelar especificidades que refinem o potencial de diagnosticar e agir em tempo hábil.

RESULTADO:

A avaliação da vizinhança no quanto é solidária, no quanto as pessoas se ajudam, apresentou-se significativa. Odds ratio para ideação foi de 3,9 quando esta vizinhança era sentida como distante ;

A presença de doenças ou problemas físicos nos últimos 12 meses e o uso de drogas ilícitas não estiveram associados à ideação, na análise univariada, diferentemente do uso de calmantes

A análise bruta sugeriu chance aumentada de ideação para uso de calmantes, porém, não foi mantida a significância estatística quando se fez o ajuste simultâneo para as outras variáveis.

Alguns estudos sugerem que os mesmos fatores de risco tendem a operar nas diferentes etapas do processo de suicídio . Entre esses níveis, a ideação suicida pode ser o alvo de um dos níveis mais precoces passíveis de intervenção. O presente estudo busca especificidades da população que relata ideação suicida nos últimos 12 meses, mas observa-se, contudo, que existem limitações impedindo a afirmação de que as diferenças encontradas entre os grupos constituam fatores de risco. Tratando-se de um estudo caso-controle inserido num estudo seccional, abordam-se os achados deste estudo como possíveis fatores associados.
Se o conceito de suicídio, como ato, revela-se complexo e repleto de divergências, pode-se pensar no quão instáveis e diversas são as definições correntes de ideação suicida. Primeiramente, as ideações a que se tem acesso são meramente as ideações "comunicadas". A limitação metodológica, então suscitada, é se há diferença entre um grupo que comunica e um grupo que não comunica ideação suicida. Acreditamos que são limitações inerentes a esse tipo de estudo já que "ideação suicida" (como pensamento) não se trata de uma variável passível de observação objetiva. Ao supor que os que responderam negativamente sobre a presença de ideação suicida, podem tê-lo feito por outras razões (valores morais, religiosos, empatia com o entrevistador etc.), admitimos a existência dessa possível fonte de viés: diferenças existentes podem não ser detectadas se o grupo controle estiver "contaminado" por ideação suicida não revelada. Contudo, procuramos enfatizar que a diferença a que nos propusemos a fazer seria entre o grupo que relata ideação e o grupo que não relata, ou seja, não a ideação como "pensamento", mas sim a ideação como "comunicação".
Dentre os 515 entrevistados, consideram-se então, neste estudo, os 29 que comunicaram, como os indivíduos que tiveram ideação suicida nos últimos 12 meses. Não se nega a existência de um contingente submerso, tanto no grupo de casos quanto no grupo-controle, que não se dispôs a revelar pensamentos a respeito de suicídio.
Os estudos, em geral, definem ideação suicida das mais variadas formas: relato espontâneo ou resposta a diferentes questionamentos, que abrangem desde pensamentos de que a vida não vale a pena ser vivida até preocupações intensas, quase delirantes 11.
Neste estudo, as questões utilizadas para identificar o grupo com ideação suicida nos últimos 12 meses, embora amenizem o discurso, não fazendo referência à palavra suicídio, não transpõem o desafio de verificar distinções entre idéias transitórias e idéias mais sólidas, persistentes, que talvez pudessem ser acessadas pelo uso de instrumentos específicos. Tratando-se de um inquérito comunitário, este estudo buscou simplificar a forma de abordagem, preterindo o uso de escalas a favor da formulação de questões mais diretas e simples, menos redundantes. Considerando a presença de ideação nos últimos 12 meses, e não na vida, espera-se reduzir possíveis vieses de memória. Contudo, o número de casos da amostra limita a interpretação de alguns resultados.
No presente estudo não foram observadas diferenças entre casos e controles quanto às variáveis sócio-demográficas. Estudos sobre ideação suicida na última semana não encontraram diferença quanto às variáveis sócio-demográficas, atribuindo vários fatores ao achado, como, por exemplo, o n reduzido limitando o poder do estudo de encontrar associações estatisticamente significantes 6 ou apontando as diferenças sócio-demográficas como menos decisivas quando se trata de ideação, em comparação com outras manifestações do comportamento suicida (planejamento e tentativa de suicídio) 16.
Já estudos internacionais recentes apontam maior prevalência de ideação suicida associada a fatores sócio-demográficos como gênero feminino, ter uma condição conjugal tal como divorciado, separado ou solteiro. As mulheres, de modo geral, tendem a ter mais ideação suicida na vida, mesmo havendo estudos que não encontram diferenças entre gêneros. O estudo prospectivo de Kuo et al., analisando os fatores sócio-demográficos, concluiu que apenas idade associa-se significativamente ao surgimento de ideação: mais jovens apresentam maior incidência. Apontam também a tendência para menor incidência de ideação entre afro-americanos e para mais casos entre indivíduos viúvos ou separados por ocasião da entrevista de base. Outros estudos mostram que ideação suicida pode ser mais prevalente entre indivíduos não casados e mais jovens.
O presente estudo não encontrou associação entre a religião (filiação religiosa) e a incidência de ideação suicida. Quanto a considerar-se religioso também não houve diferença significativa entre os grupos, no entanto, menor freqüência à igreja (menos de uma vez por mês) esteve associada ao grupo que relatou ideação no último ano. Dados da literatura referem que ideação suicida incide sem diferenças significativas entre as diversas religiões. Alguns estudos sugerem que a religiosidade, não se levando em consideração a afiliação religiosa, pode ter uma função protetora em relação ao suicídio. Em uma amostra de imigrantes latino-americanos, não foram encontradas relações entre religião e ideação suicida. Porém, a percepção da própria religiosidade e a freqüência à igreja foram negativamente associadas com ideação suicida. Infelizmente, no intuito de simplificar o questionário para facilitar a execução, optamos por abreviar a investigação de determinadas questões e com isso não pesquisamos a religião em que o indivíduo foi criado ou o tempo de conversão, que, certamente, propiciariam análises interessantes.
Quanto aos sintomas psiquiátricos avaliados, os achados deste estudo relacionados a humor depressivo e falta de energia, estão de acordo com os de Gili-Planas et al. em que transtornos afetivos são a categoria mais freqüente de transtorno em sujeitos que apresentam ideação suicida. Também a diferença quanto às "dificuldades emocionais por mais de um ano", com a especificação de que "impedem a boa realização de tarefas do dia-a-dia", pode ser atribuída aos sintomas depressivos e à falta de energia. A avaliação da vizinhança como distante ou não solidária, significativa para o grupo com ideação, pode relacionar-se a sentimentos de desesperança e solidão nesta população. Quando diferentes aspectos de sofrimento são avaliados, o sentimento de desesperança mostra-se fortemente associado à ideação suicida . Goldney apontam a importância do transtorno depressivo como fator contribuinte para ideação suicida na comunidade. Segundo estudos de autópsia psicológica, 60% dos suicídios transcorrem em indivíduos com sintomas depressivos significantes 21. Estudos de risco atribuível na população observam que, se toda a depressão pudesse ser prevenida ou efetivamente tratada, 40-50% do comportamento suicida e da ideação suicida poderiam ser eliminados. Esta consistente associação entre quadros depressivos e ideação suicida afasta uma tendência de determinados autores a "normalizar" a ideação suicida, colocando a questão como algo intrínseco ao ser humano, pensar na existência e na possibilidade de voluntariamente pôr um fim a ela. Não há evidências que sustentem este ponto de vista.
Os achados quanto ao uso de álcool e outras drogas, diferentemente dos encontrados na literatura, não permitem estabelecer diferenças entre os grupos quanto ao uso desses psicotrópicos. A literatura mostra que, para casos incidentes de ideação, por ocasião de uma entrevista de base, 13 anos antes, observa-se maior probabilidade de relatos de história de abuso ou dependência de drogas ou depressão. No mesmo estudo, não houve associação entre diagnóstico de abuso ou dependência de álcool, transtorno do pânico, agorafobia, esquizofrenia, transtornos obsessivos compulsivos (TOC) e transtorno de personalidade anti-social e o surgimento de ideação suicida. O presente estudo não avaliou aspectos de comportamento relacionados a atuações anti-sociais, a não ser uso de álcool e outras drogas.
Se ideação suicida é seis vezes mais freqüente na população do que tentativas e alguns autores sugerem que não se pode ligar muito facilmente ideação suicida à tentativa efetiva de suicídio ou defendem que há uma tendência à não progressão da ideação para outras etapas do comportamento suicida, ainda assim, há evidências de que fatores como personalidade, controle de impulsos, suporte social e fatores culturais podem influenciar a seqüência ideação suicida – tentativa de suicídio – suicídio e, a despeito de algumas descontinuidades, as diferenças etiológicas que se estabelecem entre suicídio, tentativa de suicídio e ideação poderiam ser mais de grau do que de tipo. Fatores relacionados a estresse, suporte social, auto-estima, uso de álcool, depressão, desesperança e dor crônica parecem ser comuns às várias etapas do processo.
Mesmo com o número reduzido da amostra, que limita a interpretação de alguns resultados, com possibilidade de não serem encontradas diferenças quando comparados os grupos, observou-se diferença significativa quanto às variáveis ligadas a sintomas depressivos. A presença de sintomas depressivos pode também alterar a percepção das relações sociais, proporcionando uma atitude mais pessimista frente à possibilidade de auxílio por vizinhos, ou mesmo pela igreja, e desamparo frente aos mais próximos.


Viviane Franco da Silva; Helenice Bosco de Oliveira; Neury José Botega; Letícia Marín-León; Marilisa Berti de Azevedo Barros; Paulo Dalgalarrondo
Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil

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